quinta-feira, 24 de abril de 2014

Em entrevista, Brô MC’s fala da vida na aldeia: 'o índio movimenta o bolso do patrão lá fora'

Clemerson Batista, Charlie Peixoto, Bruno Veron e Kelvin Peixoto - Foto: Goldemberg Fonseca
Eduarda Rosa
Os entrevistados dessa semana do Dourados News são os integrantes do grupo de rap indígena Brô MC’s, formado por Bruno Veron, Kelvin Peixoto, Clemerson Batista e Charlie Peixoto.
Eles possuem mais de 30 músicas de autoria própria e já mostraram suas letras em aldeias, universidades e escolas de vários Estados brasileiros.

As músicas chamam a atenção por mostrar a realidade presente no cotidiano dos integrantes dentro da Reserva Indígena da segunda maior cidade do Mato Grosso do Sul e também pela mistura entre o guarani e português.
Destaque nacional, o grupo já participou do programa da Xuxa, na TV Globo e se apresentaram na cerimônia de posse da presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2011.
Na entrevista concedida na Reserva de Dourados, eles falaram não só sobre a formação do grupo, mas também sobre os problemas enfrentados dentro das aldeias locais, porém, com ressalvas. "Aqui também temos coisas boas para mostrar".
O grupo também comenta sobre o trabalho - na maioria das vezes pesado - realizado pelos indígenas fora da reserva. "São os índios que movimentam o bolso do patrão lá fora".
Bruno e Kelvin - Foto: Ademir Almeida
Dourados News: Como começaram a fazer rap?
Bruno: Começou quando eu tinha uns oito anos de idade, nós escutávamos o 'Ritmo da Batida' [programa de rap apresentado aos sábados por uma emissora de rádio do município], aqui na aldeia, daí a gente gravava nos tapes [fitas] e levava para escutar com os amigos. Desde então me interessei pelo rap. Surgiu a oportunidade na escola para cantar os temas que eram abordados e uma vez o diretor chegou para mim e perguntou se não tinha algo diferente para apresentar, eu falei que cantava rap e expliquei que cantava um pouco em português e em guarani. Quando ele ouviu, gostou e desde aí surgiu oportunidade para cantarmos em várias escolas dentro da aldeia e em outros lugares.
Ddos News: E quando os outros se juntaram a você [Bruno]?
Bruno: Com o tempo o meu irmão Clemerson se interessou, juntamos nós dois e fizemos algumas letras, depois veio Charles. Passou mais tempo, a gente se apresentava na escola Tengatuí e o Kelvin ia cantar um rap também, mas ele estava sem 'base' das batidas. Então nós ajudamos ele e fizemos uma ‘mistura’ que deu certo, com isso ele se uniu a nós.
Nesta época o grupo não tinha nome ainda. E nós fomos nos apresentar na escola, o Higor [Lobo do grupo de rap Fase Terminal], estava lá e viu nossas músicas. Ele convidou a gente para fazer participação no CD deles e nós fomos. A gente não tinha condição de sair daqui da aldeia para Dourados, então nós fomos a pé, saímos da escola e fomos, ‘isso é que era vontade de querer gravar!’.
Ddos News: Como surgiu o nome do grupo?
Kelvin: É a junção de todos nós, nós somos irmãos [Brothers], aí ficou Brô MC’s.
Ddos News: Onde vocês buscam inspiração para as letras das músicas?
Bruno: A inspiração vem da aldeia mesmo, quando a gente sai e vê alguma situação ou escuta a situação do povo. Não só daqui, mas como de outras aldeias também. O que a gente fala nas letras é pura realidade nossa.
O grupo já visitou vários Estados brasileiros - Foto: Ademir Almeida
Ddos News: Vocês já visitaram muitas outras aldeias?
Bruno: Já, aqui na região de Dourados, Amambai, Caarapó, Panambizinho e Sidrolândia. Também fomos na aldeia de São Paulo.
Ddos News: E como foi na aldeia de São Paulo?
Kelvin: Foi 'massa' porque a maioria das pessoas já conheciam as letras das nossas músicas, receberam a gente com o maior carinho, foi muito legal.
Ddos News: Qual a diferença das aldeias de São Paulo para a de Dourados?
Kelvin: A maior diferença é na língua deles, que é diferente daqui,a pronúncia é diferente. A gente não chegou a conhecer a aldeia deles lá, fomos a uma escola, mas é praticamente a mesma coisa daqui. A diferença é que as casas deles não são de tijolos como as nossas, lá é mais de bambu e de palmeira. Lá tem mata, floresta tropical, aqui você já não vê mais.
Ddos News: As matas fazem falta para vocês?
Bruno: Faz, porque o índio vive através da natureza, por exemplo, se dá um fruto na árvore ele vai lá e colhe.
Kelvin: Os mais velhos falam que a terra é a nossa mãe e o nosso pai, porque ela que dá tudo para nós, alimento, vestimentos.
Bruno: E agora você não vê mais isso, se o índio vai tentar se rebuscar o único lugar que tem é a ‘selva de pedra’, que é Dourados.
Ddos News: Se não tem a selva, o que o índio faz hoje?
Bruno: Mudou a realidade, se antes ele ia para a floresta buscar fruta, pescar ou caçar, agora isso não tem mais. Ele tem que ir para a cidade, porque a natureza faz falta.
Kelvin: No tempo dos nossos avós existia muitos animais que eles comiam e não há mais. As pessoas também não precisavam trabalhar, porque quando tinha a selva, ela dava tudo para nós, mas com a destruição da natureza a gente não tem mais florestas e os índios são obrigados a trabalhar para se sustentar. Hoje a terra está praticamente sem roupa, porque a roupa dela é a floresta.
Ddos News: O jovem indígena hoje procura estudar mais e se profissionalizar?
Bruno: É o único jeito para ser alguém na vida. Hoje em dia tem que estudar, procurar entrar numa faculdade, se não, não tem como viver. Os brancos usam câmera, celular e internet para se comunicar, mas se é brasileiro ele nunca deixa de ser brasileiro. O índio é a mesma coisa, se está usando uma roupa, um celular... nós mesmo, se estamos cantando rap, nós não perdendo a nossa cultura, a gente só está usando um equipamento, uma ferramenta.

O dia do índio é todos os dias!

— Kelvin Peixoto

Ddos News: O que vocês querem levar com a música de vocês?
Bruno: A gente quer mostrar que o índio não é aquelas imagens que a maioria das pessoas veem, tem muitas pessoas que perguntam para mim, quando estou viajando fora do Estado, que se aqui na aldeia ainda tem onça, se vive ainda de tanga. Aí falo que eles estão desinformados, porque não sabem a realidade daqui. Eles tem mais a imagem do pessoal da Amazônia, isolado, e nós, aqui, já somos outra ‘fita’. O que a gente tenta mostrar com as nossas letras é também o conflito entre índio e branco.
Ddos News: Vocês já viajaram para vários lugares? Quais?
Bruno: Já fomos para Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília [na posse da presidente Dilma Rousseff], Minas Gerais, Assunção/Paraguai e Goiás. Nós nos apresentamos não só nas aldeias, mas também nas grandes universidades e escolas.
Ddos News: Nos outros Estados, as pessoas esperam ver índios de tangas? Elas ficam ‘frustradas’ quando veem vocês?
Bruno: Eles têm a imagem que vão ver o índio de tanguinha, com uma flecha, que vai falar em outra língua. E quando nós aparecemos de calça larga, camiseta e cantando em guarani e português, eles ficam de queixo caído. Quando a gente chegou a São Paulo 'uns brancos' lá falaram “olha o índio, olha o índio”, daí o Kelvin falou brincando, “onde? Onde?”.
Ddos News: E como foi quando vocês foram ao programa da Xuxa?
Bruno: Para nós foi um objetivo que nós alcançamos em rede nacional para mostrar como é o povo indígena, mostrar como é a realidade na letra.
Ddos News: E quando foi ao ar, teve o preconceito de uma jovem no Facebook, como foi?
Bruno: Acho que o preconceito existe, mas a gente não se abalou com isso. Nós já estamos prontos para encarar o preconceito!
Kelvin: É como a música que eu estou fazendo, ela diz, ‘pode existir preconceito, entre outros, pode me xingar, falar o que quiser, isso só me motiva mais a fazer rap e levantar mais o povo’.
Bruno: Isso deu mais força ainda para a gente mostrar o nosso trabalho.
Foto: Goldemberg Fonseca
Ddos News: O que vocês acham da aldeia de Dourados?
Bruno: Acho um lugar massa para viver, eu nasci aqui e tenho muito orgulho de representar a minha aldeia, não só de levar a Jaguapiru e Bororó, eu me sinto representando outras aldeias também. A aldeia, para mim, é muito boa de viver. Muitas pessoas falam que é um lugar violento, perigoso...
Kelvin: Alguns brancos, quando falam que vieram na aldeia outras pessoas comentam, ‘mas não é perigoso, não?’, e a pessoa responde, “não, não é perigoso”. Eu nasci aqui, estou com 23 anos e só eu sei o que nós passamos aqui dentro.
Ddos News: O que se passa dentro da aldeia?
Kelvin: Muitas coisas, violência, bebida alcoólica, droga, homicídio, suicídio, é o que acontece e é o que a gente relata nas nossas letras. Mas relatamos coisas boas também, não é todo dia que acontece morte aqui. É um lugar tranquilo, sossegado, as pessoas que vem de fora acham muito bom, sem poluição, sem barulheira, céu azul.
Ddos News: Mas o que poderia melhorar?
Kelvin: Falta de segurança. Tem que controlar a entrada de drogas, que é o que mais está afundando os nossos indígenas jovens, tanto que os adolescentes são que mais fumam. O mais agravante aqui é a droga, muitos consomem bebida alcoólica, mas eles também não podem controlar porque as pessoas sempre acham outro lugar para comprar.
Ddos News: O que vocês acham quando as pessoas falam que a aldeia é uma favela?
Bruno: Aqui já é uma favela. É periferia, porque aldeia mesmo não é. Lá na Jaguapiru, as casas são uma do lado da outra, só falta fazer uma em cima.
Kelvin: Aqui, praticamente, você não vê mais as casas antigas como eram, mais afastadas. Agora é tudo juntinha, antes as residências eram longes umas das outras.
Ddos News: Como é a rotina da maioria das pessoas aqui? Do índio do século XXI?
Bruno: No fim de semana jogam bola, alguns estudam, vão para a universidade, trabalham, são os índios que movimentam o bolso do patrão lá fora.
Kelvin: Acho que 50% dos indígenas trabalham na cidade, na construção civil é onde tem mais índio trabalhando, tem pedreiro, servente. Movimenta o mercado, trabalham no banco, supermercados, muitos também tem celular, entram no Facebook – aqui pega internet – a maioria tem smartphone.
Ddos News: No dia do índio, vocês tiveram o que comemorar?
Kelvin: Na letra da música que eu fiz diz que ‘o dia do índio é todos os dias’, para mim que sou índio o Dia do Índio é todos os dias. Eu fico até meio ‘chapado’ com isso, porque na TVs eles não mostram o dia do índio, nem neste dia é valorizado.
Tanto branco como índios de outras aldeias tem essa visão de que a aldeia de Dourados é muito violenta, gostaria que as pessoas tivessem uma consciência boa da nossa comunidade, que eles viesse sempre visitar a gente, porque tem muitas coisas boas dentro da aldeia. Aqui tem muitos trabalhadores, agricultores, também temos casas de rezas da nossa cultura, objetos artesanais.

Queria dizer também aos brancos, principalmente aos produtores rurais, que alguns filhos deles que talvez escutem as nossas músicas, podem talvez se sentir ofendido. A gente não quer ofender, mas falar daquilo que acontece dentro da nossa aldeia e de todas as outras. Acho que os dois não têm culpa - nem o índio, nem o fazendeiro – acho que quem deveria se preocupar com isso é o governo federal, nenhum dos dois são vilões dessa história, cada um de nós precisamos uns dos outros.

http://www.douradosnews.com.br/especiais/entrevistas/em-entrevista-bro-mc-s-fala-da-vida-na-aldeia-o-indio-movimenta-o-bolso-do-patrao-la-fora

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