Eduarda Rosa
“Os filhos são os pedacinhos dos pais... reencontrei meus pedacinhos!” Lino Martins
“Eles souberam onde eu estava na terça-feira (31/07) e na sexta-feia (02/08) já chegaram de Limeira/São Paulo para me ver. Me receberam com muito carinho, não esperava tanto!”, disse emocionado.
O aposentado conta que foi obrigado a se separar da esposa, por problemas que ocorreram no matrimônio e não querendo se despedir, para não causar constrangimentos, decidiu fugir para a casa de parentes em Dourados.
A situação financeira e também o medo de não ser bem recebido não deixou com que Lino voltasse a São Paulo para visitar os filhos. Com isso o tempo passou e cresceram seus três filhos: Ronei, 33 anos, Rosa Helena, 27 anos, e Fernando, 21 anos.
“Os filhos são os pedacinhos dos pais... reencontrei meus pedacinhos!” Lino Martins - Foto: Eduarda Rosa
Lino conta que chorou muito durante os dias de espera pelos filhos, ainda mais porque eles ligavam nas paradas, enquanto estavam vindo para Dourados. “Esse dia foi um grande prêmio, foi muita alegria ter os meus filhos na minha presença”.
Após todos esses acontecimentos seu Lino conselha: “Pais tenham paciência com os filhos e filhos recebam seus pais com muito carinho e amor, pois a maior herança dos filhos são os pais e a maior herança dos pais são os filhos”.
Seu Lino pretende retornar a Limeira em setembro para conhecer o netinho de quatro anos, filho de sua filha, Rosa Helena, e o novo neto que nascerá em breve, filho de seu caçula.
“Agradeço a Deus por tudo de bom que Ele fez. Só Deus para trabalhar tão certo e trazer tantas coisas boas assim!”, finaliza o pai de Ronei, Rosa Helena e Fernando.
Pai e filhos reunidos - Foto: álbum de família
Confira o artigo escrito pelo filho mais velho de Lino, Ronei Costa Martins, sobre o reencontro com o pai:
O cheiro do meu pai
Foi o cheiro dele, o cheiro do meu pai. Aquele cheiro característico, forte, que ativou uma série de lembranças. Eu havia esquecido por completo seu cheiro, não lembrava mais. Mas quando dele me aproximei, foi como se aquela provocação odorífera ligasse-me com experiências vitais vividas na infância, tirando-me de uma amnésia provocada pela ausência do pai.
Marcel Proust, definiu esta experiência humana, de forma genial, em sua obra clássica, Em Busca do Tempo Perdido. Proust apresentou uma belíssima reflexão sobre a memória, mas não a memória comum, fruto da nossa inteligência, que nos restitui de fatos passados com um mínimo esforço, como um simples arquivo que se abre à nossa vontade. E ao abrir fornece apenas fatos, datas, números e nomes, excluindo as sensações que experimentamos em tempos idos e que não habitam mais em nossas consciências. Estas sensações residem mais fundo e só são despertadas pelo que Proust chamou de Memória Involuntária: aquela que não depende de nosso esforço consciente de recordar, que está adormecida em nós e que um fato qualquer pode fazer subir à consciência.
Foi exatamente o poder incontrolável da Memória Involuntária de Proust que experimentei nestes dias recentes.
Dois dias após ter descoberto o paradeiro do velho Lino, estávamos nós na estrada, rumando ao seu encontro. A longa viagem foi temperada pela expectativa do reencontro, afinal, vinte anos que nos separava, e estávamos há apenas algumas horas de revê-lo. Meu irmão, Fernando, contava, à época, apenas alguns meses de vida e hoje, está de casamento marcado. Minha irmã, Lena, criança de 6 anos, hoje conta 26. Quanta coisa aconteceu conosco e com ele neste intervalo. Ele haveria de ter mudado, tanto quanto nós mudamos? Nada sabíamos e por nada saber, a viagem traduziu-se numa explosão demorada de sensações angustiantes. Nos últimos anos tentava acostumar-me com a ideia de que meu pai havia morrido. Sim, parecia mais aceitável a ideia da morte, uma vez que não conseguíamos encontrá-lo. Algo como um conformismo barato, mas necessário. Tentava assim sepultar a possibilidade de uma reconciliação que talvez nunca viria.
De Limeira a Dourados, MS percorremos mais de 1.000 quilômetros, foram 14 horas na estrada. Cada centímetro de distância encurtada entre nós fazia o coração atropelar o compasso habitual. Não foi fácil segurar a ansiedade.
Chegamos sexta feira, na boca da noite. Ao aproximarmo-nos com o veículo, avistamos ele, na calçada defronte à casa em que mora, esperando-nos. A primeira vista foi de espanto: Meu pai encolheu! A última vez que o vi, contava eu apenas 13 anos e tinha que olhar para cima para falar-lhe. Agora a situação se inverteu. Estacionei o carro e não quis descer: refuguei feito um burro teimoso. Tomei um tanto de ar, enchendo os pulmões e disse pra mim mesmo: ‘Coragem rapaz’ e saí do carro, acompanhado dos meus irmãos e da namorada. Fui até ele, beijei-o e nos abraçamos demoradamente.
Naquele momento entendi, em profundidade, a teoria de Marcel Proust. Senti o cheiro do meu pai e incrivelmente era o mesmo cheiro de décadas atrás. Mais: de forma instantânea o cheiro do meu pai ativou em mim uma enxurrada de lembranças esquecidas. E estas, ao emergir das profundezas do meu esquecimento, ajudaram–me compreender uma série de coisas sobre mim. Assim, numa síntese sem exageros diria que fui procurar meu pai e acabei encontrando a mim mesmo, senti-me aquele caçador de mim, desenhado pelo Milton Nascimento.
O dia em que o pai comprou uma piscina de vinil de 1000 litros, com dinheiro que ganhou no Jogo do Bicho foi uma das coisas adormecidas e que foram despertadas quando seu cheiro tomou-me instantaneamente pelas narinas. Á época ele era ajudante de fundição, na Máquinas Varga – a empresa veio chamar-se Freios Varga, anos mais tarde. Recebia pelo seu trabalho o salário de cento e trinta e cinco cruzeiros mensais.
Todos os sábados ele fazia apostas no Jogo do Bicho, um jogo socialmente aceito e tolerado pelas autoridades, muito embora seja considerado contravenção. Nunca entendi o jogo do bicho, mas gostava de acompanhar o pai em seu ritual, que eu aqui batizo de “A leitura da borra do café”.
Naquele dia, como em outros tantos, o pai foi até o quintal, segurando numa das mãos uma xícara de café frio e na outra uma caixinha de fósforos. Eu, como sempre o seguia e observava tudo, atento como um animalzinho. Diferentemente de outros dias, entretanto, ele pediu-me para segurar a xícara de café, enquanto ele riscava o fósforo na caixa. Uma vez acessa a pequena chama, o pai aproximou o palito aceso da xícara e mergulhou sua extremidade em chamas na porção de café. Aquilo, como sempre, resultava numa mancha acinzentada na superfície negra. Aquela borra era finalmente analisada pelo pai, que via nela uma imagem. As vezes um macaco, noutras um tigre, ou mesmo um coelho. Eu nunca conseguia ver o mesmo que ele, mas gostava de vê-lo compenetrado em sua alquimia. Naquele dia a borra do café revelava para ele a imagem de uma borboleta. Feita a leitura, o café foi jogado na parte de terra do quintal e a xícara deixada sobre a pia da cozinha. Em seguida rumamos para o bar, seu Lino e eu. Lá o pai faria a aposta na “borboleta”.
No fim da tarde daquele mesmo dia veio o resultado. Ele havia ganhado setenta cruzeiros, equivalente à metade de seu salário mensal. Pouco importava o fato de que ele jogava com frequência e raramente ganhava algo. Naquele dia, a criança que eu era viu o mago da borra de café, capaz de adivinhar os resultados de jogos futuros. Eu, na minha meninice, imaginava então que ele poderia prever outras coisas com a sua técnica para decifrar signos nas superfícies negras do café frio.
Naquela mesma semana, estávamos eu e minha irmã nos banhando numa pequena piscina de vinil de apenas mil litros, tudo graças à capacidade mágica do pai em decifrar imagens formadas na superfície do café.
Quando nos perdemos de meu pai, era meados de 1994, ano marcado pelo Plano Real, pela conquista do tetracampeonato de futebol e pela morte do Airton Senna. Aqui, em Limeira, vivíamos um tempo difícil. Eu contava 13 anos, minha irmã 6 e meu irmão recém-nascido. Morávamos num casebre alugado, no jardim Morro Azul, próximo à igreja São Paulo, apóstolo. Embora com a vida difícil, seu Lino nunca perdera o bom humor, tipicamente mineiro. E numa daquelas manhãs esquisitas, ainda sob a ressaca da copa, com o pênalti perdido pelo Roberto Baggio ricocheteando na memória, sentimos a sua ausência: Meu pai havia saído sem nada levar, sequer uma peça extra de roupa. Nos dias, meses e anos que se seguiram tentamos localizá-lo, porém sem sucesso. Restou tocar a vida: o tempo passou, eu cresci, meus irmãos cresceram e minha mãe, dona Maria, ficou mais forte. Muito embora sigamos nesta toada da vida, havia um hiato nesta história que carecia ser completado.
Passamos dois dias juntos em Dourados, interior do Mato Grosso do Sul. Conhecemos a parte da família que nos faltava, fomos muito bem acolhidos e acertamos as contas com o velho Lino. Ele nos contou das experiências quando viveu na rua, como andarilho, logo após ter desaparecido de nós, falou da solidariedade dos povos moradores de rua, da qual pôde experimentar na pele. Contou-nos como chegara à Dourados, pedindo caronas e como encontrou sua irmã, a tia Maria Rosa, com a qual vive até hoje. Mostrou-nos os lugares por onde trabalhou em Dourados e as amizades que por lá cativou. Contou-nos coisas que fez por nós que jamais imaginávamos, revelando-se um pai preocupado enquanto pode. Depois deixou as lágrimas caírem, ao afirmar que estávamos presentes em suas orações durante todos os dias desde aquela fatídica manhã de 1994. Elaboramos os perdões necessários, reconciliamo-nos e eu pude dizer ao meu pai, aquilo que à época não fora possível: o quanto eu o amo e o quanto ele é importante pra mim.
Hoje, com 75 anos, o velho Lino está aposentado e, quando não está contando estórias ou histórias para os sobrinhos netos, vai às ruas para, no verão vende ervas para tererê e no inverno ervas para chimarrão. E foi exatamente numa destas histórias contadas que o elo se refez. Sentado sob a sombra da mangueira da casa em que mora, meu pai se misturava aos sobrinhos netos, que gostavam de ouvir suas histórias, quase um “Forest Gump”, diriam alguns. Admito, esta sempre foi uma de suas habilidades. Muitas destas narrações eram inacreditáveis para os meninos e meninas que acompanhavam atentamente. Uma delas, a de que o tio Lino teria três filhos vivendo no interior do estado de São Paulo soava como piada. Não podiam imaginar que o tio Lino teria 3 filhos que não via há quase vinte anos, uma vez que aqueles que ouviam sequer contavam duas décadas de vida. Assim, ao ouvir esta história pela enésima vez, uma das sobrinhas neta decidiu anotar o nome dos filhos e garimpar o paradeiro destes na internet. Pronto, dias depois, exatamente no dia 31 de julho, última terça feira, eis que fui premiado por um recado em minha Fanpage, no Facebook, o qual indicava o paradeiro do velho Lino, meu pai. Dois dias depois, no dia 02, quinta feira, estávamos todos, minha irmã, meu irmão, minha namorada e eu, na estrada, em busca de nossa história esquecida...
Ronei Costa Martins, filho da Maria e do Lino
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